Biografia

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O rottweiler e o pitbull

Ontem eu quase fui mordido por um cachorro. Talvez a culpa tenha sido minha, por passar tão perto dele. Acho que se assustou quando apareci no portão da marmoraria que estava aberto. Pensando melhor, a culpa é dos dois panacas que deixaram o portão aberto. Eles estavam gritando com alguém do outro lado da rua, eu cheguei a olhar, procurando com quem falavam, mas o importante é que eu quase fui mordido por um cachorro. Era um rottweiler de uns quarenta, cinquenta quilos, já meio velho de guerra, mas nem por isso menos assustador. Se fosse por categoria de peso eu estaria em vantagem, mas não corro como ele nem conseguiria disputar com o monstro na mordida. Ainda bem que ele latiu antes de vir na minha direção, pois deu tempo do dono perceber a besteira que fez e eu pude congelar imediatamente, e em seguida abrir os braços, num instinto animal para parecer bem maior do que já sou. Felizmente não foi preciso colocar a eficácia da estratégia à prova, já que bastou o dono gritar o nome do cachorro para ele sossegar.


No mesmo dia, porém um pouco mais tarde, eu vi um pitbull. Não era um cachorro, mas uma besta. E como da vez anterior, não chegou a morder, mas faltou pouco. E a culpa foi de um pedaço de alcatra. Percebi agora que não havia contado que estava indo para o mercadinho aqui perto de casa quando o rottweiler se afeiçoou por mim. E foi nesse mesmo mercadinho, o qual eu estava visitando pela segunda vez nesse dia, que o pitbull deu às caras. Foi mais ou menos assim que aconteceu: um cliente comprou uma peça inteira de alcatra, e enquanto ia para o caixa pagar, o saco da carne deixava um rastro de sangue pelo chão. O cliente então voltou ao açougue e pediu que embrulhassem melhor a carne. Os funcionários do açougue, pouco habilidosos e aparentemente de má vontade, colocaram o pacote numa sacola amarela de um mercado concorrente – sabe-se lá o que aquela sacola estava fazendo ali – e nesse exato momento o dono do mercadinho apareceu perguntando por que havia tanto sangue pelo chão do mercado. O cliente mal explicou o que estava acontecendo e o pitbull começou a gritar e xingar. 



O moço deve ter quase um metro e oitenta e se parece com o Jaba, vilão de Star War. Os funcionários do açougue, dois velhotes magricelas que juntos não pesavam a metade do patrão, não conseguiam fazer outra coisa senão, com olhares e sussurros, acusarem-se um ao outro. O dono do mercado, ao ver a merda feder, a carne escorrendo sangue dizendo que não havia sido refrigerada corretamente, o cliente insatisfeito voltando ao açougue, a utilização de uma sacola de outro mercado que possivelmente estava ali vagando a tempos, esbravejava: “vocês querem me foder, eu não estou entendendo, se não está bom pra vocês vão pra putaquiupariu, vão pra casa do caralho, vão pro inferno os dois”. E isso acontecia em um espaço minúsculo, pouco maior que a cozinha da minha casa. Os três ali, no açougue do mercado, o Jaba gritando e xingando, os funcionários acuados, humilhados, e ao redor várias facas, muitas facas dando sopa. 



Quando percebi que aquilo podia acabar em desgraça, dei as costas para o imbróglio e fiquei escutando, esperando. Não custava nada o pote entornar e um dos velhotes mandar a faca no bucho do estúpido. Afinal de contas, se eles trabalham ali foi porque alguém os contratou, e esse alguém possivelmente é ele mesmo, o dono. A culpa era dele. Mas ninguém meteu a mão na faca. E tudo acabou numa grande comédia pastelão. 






quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Bicicleta

Me lembro - isso mesmo, começei a frase com "me lembro" - muito bem do dia em que minha filha prendeu o pé na roda da bicicleta. Acho que ela tinha 4 ou 5 anos. E acho que não me lembro tão bem assim. Nessa época, eu trabalhava em casa. Tinha montado uma birosquinha que não vendia bebida alcoólica e que, talvez por isso, não era muito lucrativa. Mas que era bastante divertida. Meu trabalho, ou a falta dele, me deixava tempo de sobra para levá-la e buscá-la na escolinha. Íamos de bicicleta, e ela ia sentada em um banquinho pendurado na frente do guidão, de frente para mim e de costas para a rua. Não sei como alguém pôde inventar uma coisa dessas, ou como eu podia levar minha cabeçudinha ali. Também não sei como pude escrever uma frase assim. Mas deixemos isso pra lá.
Um dia, voltando da escola, ela botou o pé perto demais da roda. Ainda bem que a bicleta ia devagar. O pezinho entrou entre os raios, fazendo a magrela parar de repente. Ela chorou bastante. O susto foi grande. E o pé - que bom ! -, esse continuava inteiro. 
Não me lembro se continuei a levá-la de bicicleta. Acho que sim. Mas passei a ter muito medo de machucar minha filha de novo. 
Hoje eu não estou mais na bicicleta.


segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Lápis

Podem falar o que quiserem, eu não ligo. Eu gosto mesmo é de escrever a lápis. Gosto do som que ele faz ao riscar o papel. Gosto das nuances de preto e cinza que ficam marcadas ali enquanto meus dedos deslizam pela folha branca, e que dependem totalmente do peso da minha mão. Gosto do ritual de se afiar a ponta do lápis, mais fininha ou grossa, mais comprida ou curta. Gosto de imaginar que meu lápis é uma flecha, e que estou preparando minha flecha. Quanto maior for o capricho - e a habilidade - maiores serão as chances de acertar o alvo. Sempre há um alvo. Escrever é lançar uma flecha. 
Também posso imaginar meu lápis e a folha como amantes. Afinal de contas são um casal, ou não são ? O lápis e a folha. 
Mas nem todos os romances são felizes ...


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Poucas palavras

    Deixo meu Twitter aberto, e vou passando os olhos nas postagens. Não é raro alguma coisa prender minha atenção, e quando isso acontece paro tudo e vou ver o que é aquilo. Foi assim que conheci a música "Poucas Palavras", do grupo Inquérito. Lá pelo meio da letra a gente encontra um pedaço que fala assim:
 
    Poucas palavras, tio, vou ser breve
    Se a história é nossa
    Dexa que nois escreve

    Os jornais nos dizem que a ocupação da Rocinha foi um grande sucesso. Os jornais nos dizem que a ocupação da Rocinha inaugurou uma nova era para seus moradores. Os jornais nos dizem que eles precisam ajudar, usando o disque-denúncia e abrindo a porta de casa para a polícia. Os jornais nos dizem muitas coisas. Os jornais nos dizem o que fazer.

    Há sempre alguém nos dizendo o que fazer. 

   Não me diga como devo ler meus livros. Não me conte os segredos da leitura. Não me explique a história. Porque esse livro é seu. O meu é outro. E eu não preciso de mapa nessa viagem.

    Poucas palavras, tio ...




quinta-feira, 24 de novembro de 2011


Não tenho pressa

    Leio devagar. Não sei se isso é uma deficiência. Pode ser uma virtude. Não tenho pressa. Já me falaram que, quando leio, fico um bom tempo com o livro na mão, pensando. Nunca percebi isso. Deve ser brincadeira dessa gente, ou implicância. Na verdade eu acho que certas partes de um livro já valeriam pela leitura do livro todo. Por que continuar, se onde cheguei está tão bom ? Parece que a frase me coloca no colo, e as palavras me embalam em um sono gostoso ... eu devo mesmo ficar com o livro na mão, pensando. Reconheço: não é implicância não. 
    Leio o mesmo livro muitas vezes. Não posso imaginar um livro lido uma única vez e deixado para sempre em uma prateleira egoísta. Pelo menos aqueles de que gostei. Seria como conhecer uma pessoa, gostar do papo e depois daquele encontro nunca mais conversar com ela. Volto aos meus livros. Sempre. Abro suas páginas e procuro as notas, as partes inteiras apoiadas no traço do lápis que lhe dão uma importância provavelmente invejada. Gosto de encontrar papéis dentro deles, bilhetes de ônibus, panfletos de rua, marcas involuntárias e outras não tão inocentes. Meus livros têm cicatrizes por todos os lados.
     Apesar da pressa do mundo, eu gosto é de ler devagar.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Meu livro é único

    Costumo levar sempre um livro comigo. Mais comum é trazê-lo na mão, à vista de todos, insinuando-se do modo mais desavergonhado possível, tentação para cabeças adormecidas. Naquele dia meu livro não estava assim. Trazia-o na minha bolsa, num espaço - uma espécie de bolsinho externo - que há muito havia se revelado um local - um ninho - quentinho para apaziguar  sua momentânea solidão. 
       Um livro deve estar no lugar para onde foi feito. Nas mãos do leitor. Não trazia o livro pendurado no braço porque folheava uma revista que rapidamente perdeu o encanto. Guardando-a, foi ai que percebi o perigo: meu livro estava prestes a cair da bolsa, ou melhor - ou pior - sair do ninho para um voo involuntário. O que se revelava ali me levou a entender algumas coisas que deveriam ser óbvias, mas que nosso mundo tem transformado em revelações.
      Meu livro custa cerca de trinta reais, o que faz com que sua substituição não seja uma coisa difícil. Ele também continua à venda nas livrarias, o que facilita mais ainda as coisas. Por que então senti tanto medo quando percebi que meu livro podia ter caído da bolsa ?
      Porque percebi que meu livro é único, não existe outro igual no mundo. Se o perdesse, perderia as .marcas do tempo, do uso, das diversas leituras e releituras. Perderia as notas, muitas delas incompreensíveis até para mim, mas que testemunham momentos que são somente meus. Quem no mundo tem um exemplar igual ao meu de A Montanha Mágica com uma página rasgada ?
      Comprar outro livro não traria o conforto necessário, nem acabaria com meu sentimento de perda. 
      Ainda tenho esse livro comigo até hoje.

Na minha estante

Mais cedo ou mais tarde o espaço - a falta dele - nos coloca contra a parede. Sem ter para onde fugir, adiamos esse confronto, inevitável, planejando o que fazer, mas não fazendo. Os livros, que já reclamavam do aperto nas estantes, agora são colocados uns sobre os outros. Qualquer espaço imaginado é trazido à realidade, em arranjos que desafiam as leis da física: na minha estante, dois livros parecem ocupar o mesmo lugar no espaço.