Ontem
eu quase fui mordido por um cachorro. Talvez a culpa tenha sido minha, por passar
tão perto dele. Acho que se assustou quando apareci no portão da marmoraria que
estava aberto. Pensando melhor, a culpa é dos dois panacas que deixaram o
portão aberto. Eles estavam gritando com alguém do outro lado da rua, eu
cheguei a olhar, procurando com quem falavam, mas o importante é que eu quase
fui mordido por um cachorro. Era um rottweiler de uns quarenta, cinquenta quilos,
já meio velho de guerra, mas nem por isso menos assustador. Se fosse por
categoria de peso eu estaria em vantagem, mas não corro como ele nem
conseguiria disputar com o monstro na mordida. Ainda bem que ele latiu antes de
vir na minha direção, pois deu tempo do dono perceber a besteira que fez e eu pude
congelar imediatamente, e em seguida abrir os braços, num instinto animal para parecer
bem maior do que já sou. Felizmente não foi preciso colocar a eficácia da
estratégia à prova, já que bastou o dono gritar o nome do cachorro para ele
sossegar.
No mesmo dia, porém um pouco mais tarde, eu vi um pitbull. Não era um cachorro,
mas uma besta. E como da vez anterior, não chegou a morder, mas faltou pouco. E
a culpa foi de um pedaço de alcatra. Percebi agora que não havia contado que
estava indo para o mercadinho aqui perto de casa quando o rottweiler se
afeiçoou por mim. E foi nesse mesmo mercadinho, o qual eu estava visitando pela
segunda vez nesse dia, que o pitbull deu às caras. Foi mais ou menos assim que
aconteceu: um cliente comprou uma peça inteira de alcatra, e enquanto ia para o
caixa pagar, o saco da carne deixava um rastro de sangue pelo chão. O cliente
então voltou ao açougue e pediu que embrulhassem melhor a carne. Os
funcionários do açougue, pouco habilidosos e aparentemente de má vontade,
colocaram o pacote numa sacola amarela de um mercado concorrente – sabe-se lá o
que aquela sacola estava fazendo ali – e nesse exato momento o dono do
mercadinho apareceu perguntando por que havia tanto sangue pelo chão do mercado. O
cliente mal explicou o que estava acontecendo e o pitbull começou a gritar e
xingar.
O moço deve ter quase um metro e oitenta e se parece com o Jaba, vilão de Star
War. Os funcionários do açougue, dois velhotes magricelas que juntos não
pesavam a metade do patrão, não conseguiam fazer outra coisa senão, com olhares
e sussurros, acusarem-se um ao outro. O dono do mercado, ao ver a merda feder,
a carne escorrendo sangue dizendo que não havia sido refrigerada corretamente,
o cliente insatisfeito voltando ao açougue, a utilização de uma sacola de outro
mercado que possivelmente estava ali vagando a tempos, esbravejava: “vocês
querem me foder, eu não estou entendendo, se não está bom pra vocês vão pra
putaquiupariu, vão pra casa do caralho, vão pro inferno os dois”. E isso
acontecia em um espaço minúsculo, pouco maior que a cozinha da minha casa. Os
três ali, no açougue do mercado, o Jaba gritando e xingando, os funcionários
acuados, humilhados, e ao redor várias facas, muitas facas dando sopa.
Quando percebi que aquilo podia acabar em desgraça, dei as costas para o imbróglio
e fiquei escutando, esperando. Não custava nada o pote entornar e um dos
velhotes mandar a faca no bucho do estúpido. Afinal de contas, se eles
trabalham ali foi porque alguém os contratou, e esse alguém possivelmente é ele
mesmo, o dono. A culpa era dele. Mas ninguém meteu a mão na faca. E tudo acabou
numa grande comédia pastelão.